Entrevista – ARMAZÉNS DO CHIADO | DIA DO AUTOR PORTUGUÊS

A propósito do Dia do Autor Português, estivemos à conversa com a Susana Amaro Velho, autora do seu mais recente livro Inquieta. É importante relembrar a importância da literatura portuguesa, bem como os assuntos relacionados com saúde mental que são abordados no livro.

 

1. Quando é que a escrita passa a ser um sonho vivido em conjunto e não apenas por ti própria? A leitura e a escrita sempre fizeram parte da minha vida. Lembro-me de andar com um livro e um caderninho desde que aprendi a juntar letras. Em miúda, deliciava-me com as composições na escola e escrevia contos infantis cheios de bicicletas voadoras e miúdas que viajavam no tempo. Vivia para os meus diários. Inventava histórias, personagens, magicava cenários. Muitas delas eram fruto do que via e vivia. Acredito que isto de escrever se tornou mais sério quando surgiu a febre dos blogues e a posterior partilha de textos no Facebook. Comecei a tornar públicas algumas das coisas que escrevia, umas mais pessoais e outras totalmente ficcionadas, e isso, a atenção que tive de um público que me pedia mais, levou a que considerasse a possibilidade de agarrar numa história que estava guardada na gaveta há muitos anos. Foi devido a esse reconhecimento, ao facto de começar a ter leitores do blogue que desejavam não só excertos, mas uma história, que queriam mais das minhas personagens, que me fez terminar o manuscrito do que viria a ser o meu primeiro livro editado – As últimas linhas destas mãos.

 

2. Inquieta – o próprio nome já nos indica qual será o grande tema do livro. Consideras que as pessoas hoje em dia estão mais dispostas a falar e, neste caso, a ler sobre a saúde mental?

Eu acredito que a saúde mental ainda não tem o espaço que merece. E que precisa de ter. Ainda é necessário que se desmistifiquem algumas questões, que se aborde o tema com coragem e sem vergonha. Os transtornos de ansiedade, a depressão, a doença mental não tem de ser uma causa solitária. Precisam de acompanhamento, de vigilância e de muita empatia. Acho que esta é a palavra que mais tenho usado: empatia. Foi essa a mensagem que quis passar com este livro, com esta personagem, porque é urgente que se perceba que ao nosso lado, ao virar da esquina, onde menos esperamos, pode

viver alguém sufocado por si mesmo e a precisar de uma mão que o puxe e traga à tona. Sinto que as pessoas estão mais abertas a ler sobre o tema. Sinto que este e outros livros poderão levar a uma partilha de experiências pessoais, porque há uma identificação com a personagem. Mas, infelizmente, sinto também que o caminho é longo e que há ainda muito por fazer.

 

3. A personagem principal – Julieta – foi inspirada em alguém que tenhas presente na tua vida?

A Julieta é um pouco de mim. Um pouco da minha mãe. Um pouco das minhas amigas. Das minhas colegas. É uma personagem-tipo que sem ser uma de nós, consegue ser um bocadinho de todas. Os anseios, os dramas adolescentes, os medos adultos e as inseguranças são comuns a muitas mulheres e a prova disso é o feedback que tenho tido. São inúmeras as mensagens que tenho recebido de leitores – e aqui cabem também alguns homens, embora acredite que este livro está mais direcionado para um público feminino – que se têm identificado com esta Julieta. Que têm partilhado comigo exemplos de relações tóxicas – das amorosas às familiares – que me têm contado episódios, difíceis e sufocantes, de ataques de pânico, que me têm confessado a sua vergonha, as traições de que foram vítimas, o medo permanente com que vivem sem saber, sequer, identificar de onde ele vem. Há muitas Julietas por aí a precisar de espaço e de voz. E é isso que lhes quero dar com este livro.

 

4. O teu portefólio já conta com três romances. Gostavas de explorar outros registos no universo da escrita? Quais e porquê?

Não me vejo a escrever algo que não romance, porque também é aquilo que leio e com que me identifico. Também leio não-ficção, adoro biografias por exemplo e a última que li – The Storyteller de Dave Grohl – foi incrível, mas eu gosto mesmo é de inventar histórias. Gostava, no entanto, de explorar e de me aventurar num registo mais Young Adult, também pelo facto de gostar de ler livros que abordam os temas da adolescência, os primeiros desafios e amores. Fazem-me recuar no tempo e sentir nostálgica.

 

5. Sendo que este artigo será publicado no Dia do Autor Português – Quem são as tuas maiores inspirações nacionais?

Há ótimos autores nacionais e há dias debatia numa apresentação, precisamente, o facto de ser tão bom e enriquecedor ler a nossa língua. Lemos tantos livros internacionais, traduzidos, que nos esquecemos da riqueza da língua, da sua beleza no seu estado puro, da sua essência. Ler em português, ler com qualidade, é um dos meus maiores prazeres. E há autores que me fazem suspirar entre parágrafos. Que me fazem querer escrever mais e melhor e que me ensinam tanto. Que, no fundo, são uma inspiração. A primeira, na minha lista, é a Maria José Núncio.

 

6. O que significa para ti ser a primeira autora portuguesa da chancela feminina Aurora, do Grupo Infinito Particular?

Fiquei muito honrada quando percebi que isso iria acontecer – que seria a primeira – , porque me identifiquei imediatamente com o projeto. Ser um autor português já é complicado, ser um autor português do sexo feminino torna a coisa ainda mais difícil. O mercado literário português é muito fechado, castra as novas vozes, e ainda existe aquele estigma de que as mulheres só sabem escrever romances sobre maridos e filhos e frustrações amorosas. Isso não é, de todo, verdade, mas, ainda assim, se uma mulher abordar esses temas pode fazê-lo com qualidade e um livro não tem de ser considerado menos bom por isso. Basta olhar para o que vende a Colleen Hoover e é sobre isso que ela escreve. O paradigma tem de mudar. Há espaço para todos, porque existe público para todos. A Aurora vem dar um empurrão. Vem dar espaço a novas autoras contemporâneas que querem vingar, mostrar o seu trabalho e provar que têm qualidade. É necessária mais abertura e mais cooperação e a Aurora é isso.